O processo de evolução social e desconstrução de modelos é uma conquista árdua e diuturna. Somos criados em meio a padrões de conduta de certo/errado, como se todos os indivíduos fossem iguais em suas escolhas e desejos.

A visão de uma família institucional, casamentária, hierarquizada e apenas heterossexual serve, desde há muito, como instrumento de controle e negativa de direitos. Ao invés de inclusão o direito usa como norte, de uma forma ou outra, a exclusão de qualquer família que fuja do modelo que nos é introjetado desde os desenhos infantis.

A grande prova disso é a repercussão da possibilidade de algumas iniciativas de escrituração de uniões poliafetivas. Essas relações são compostas por três pessoas ou mais, com intenção de constituir família e em plena comunhão de vida.

Ao contrário do que ocorre na família simultânea, onde por vezes existe o desconhecimento por parte de alguém ou, no mínimo, a moradia em locais diferentes, na família poliafetiva existe uma vivencia coexistencial entre os integrantes do relacionamento.

A primeira notícia a respeito de tal estruturação ocorreu em agosto de 2012 quando veio à tona que na cidade de Tupã, interior de São Paulo a tabeliã de notas e protestos Cláudia do Nascimento Domingues havia realizado uma Escritura Pública de União Poliafetiva.

No caso em tela a tabeliã foi procurada por três pessoas, duas mulheres e um homem, que viviam em união estável e desejavam declarar essa situação publicamente para a garantia de seus direitos. Os três procuraram diversos tabeliães que se recusaram a lavrar a declaração de convivência pública.

Conforme o documento lavrado, os conviventes “diante da lacuna legal no reconhecimento desse modelo de união afetiva múltipla e simultânea, intentam estabelecer as regras para garantia de seus direitos e deveres, pretendendo vê-las reconhecidas e respeitadas social, econômica e juridicamente, em caso de questionamentos ou litígios surgidos entre si ou com terceiros, tendo por base os princípios constitucionais da liberdade, dignidade e igualdade.”[1]

Apesar de respeitáveis posições contrárias à formalização dessa união[2], em nosso sentir, não existe vedação jurídica para tal comportamento e trata-se, ao fim e ao cabo, de uma plena manifestação da autonomia privada e relacional. Impedir o livre exercício da sexualidade, bem como o direito à felicidade do cidadão é postura repelida em nosso ordenamento jurídico.

A formalização dessas uniões permite a opção por quaisquer dos regimes patrimoniais disponíveis em nosso ordenamento jurídico, a possibilidade de que algum deles fique responsável pela administração dos bens e todas as disposições a respeito da vida patrimonial da família poliafetiva.

Também será consignado no documento o dever de lealdade, previsto no artigo 1.725 CC para a união estável, não se aplicando o dever de fidelidade que, em nosso ordenamento jurídico somente existe em relação ao casamento no artigo 1.566 CC.

Afirmar que as famílias poliamoristas são possíveis dentro do nosso ordenamento jurídico correlaciona nosso pensamento ao princípio da afetividade e ao da dignidade da pessoa humana, considerando-se um enquanto complementar do outro, ou seja, não é possível que se fale em dignidade da pessoa humana se os indivíduos estão sendo tolhidos de organizar sua entidade familiar da maneira como lhe convém.[3]

É o poliamor, na busca do justo equilíbrio, que não identifica infiéis, quando homens e mulheres convivem abertamente relações afetivas envolvendo mais de duas pessoas. Vivem todos em notória ponderação de princípios, cujo somatório se distancia da monogamia e busca a tutela de seu grupo familiar escorado no elo do afeto. A começar com o princípio do pluralismo das entidades familiares, consagrado pela Carta Política de 1988, que viu no matrimônio apenas uma das formas de constituição da família, admitindo, portanto, outros modelos que não se esgotam nas opções exemplificativamente elencadas pela Constituição Federal, não havendo mais dúvida alguma acerca da diversidade familiar depois do reconhecimento pelo Supremo Tribunal Federal das uniões homoafetivas, que terminou com qualquer processo social de exclusão de famílias diferentes.[4]

Destaca-se, outrossim, que na gama de princípios elencados pela Carta Política de 1988, o princípio da dignidade da pessoa humana foi previsto no artigo 1°, inc. III da Carta Constitucional, elencado com um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito. Trata-se de um macroprincípio sob o qual irradiam e estão contidos outros princípios e valores essenciais como a liberdade, autonomia privada, cidadania, igualdade, alteridade e solidariedade.[5]

Este princípio possui como núcleo essencial a ideia de que a pessoa humana é um fim em si mesma, não podendo ser instrumentalizada ou descartada em função das características que lhe conferem individualidade e imprimem sua dinâmica pessoal.[6]

A escolha da dignidade da pessoa humana como fundamento da República, com a previsão do § 2º do artigo 5º, no sentido de não exclusão de quaisquer direitos e garantias, mesmo que não expressos, desde que decorrentes dos princípios adotados pelo texto maior, configuram uma verdadeira ‘cláusula geral de tutela da pessoa humana’, tomada como valor máximo pelo ordenamento.[7]

Conforme José Carlos Teixeira Giorgis, é “algo que pertence necessariamente a cada um e não pode ser perdido e alienado. A dignidade da pessoa humana reclama que o Estado guie suas ações tanto no sentido de preservar a dignidade existente, quanto objetivando a promoção desta, especialmente criando condições que possibilitem o pleno exercício e fruição da dignidade”.[8]

Sob a ótica do melhor interesse da pessoa, não podem ser protegidas algumas entidades familiares e desprotegidas outras, pois a exclusão refletiria nas pessoas que as integram por opção ou por circunstâncias da vida, comprometendo a realização do princípio da dignidade humana.[9]

Dessa forma, em nosso sentir, não há como concordar com a recomendação do Conselho Nacional de Justiça às serventias extrajudiciais com atribuição de notas, para que deixem de realizar escrituras públicas declaratórias de “uniões poliafetivas”. Tal postura foi adotada nos autos do Pedido de Providências nº 0001459-08.2016.2.00.0000, que questiona a lavratura de escrituras públicas declaratórias de “uniões poliafetivas” sejam lavrada.

Essa postura apenas impossibilita a proteção daqueles que pretendem, tão somente, regulamentar aquilo que já faz parte de sua realidade. Constitui, certamente, um retrocesso ao reconhecimento do pluralismo familiar em claro atendimento indigno àqueles que fizeram essa escolha afetiva.

Proibir tal atitude a uma categoria de pessoas que são capazes para todos os atos da vida civil é, no mínimo, uma intervenção injustificada e insensível. Na linguagem popular, quando nos sentimos incomodados, costumamos dizer: “Não te mete onde tu não és chamado”. Nesse caso, essas três pessoas ou mais somente estão chamando o Estado para dizer que existe e, nunca, para pedir permissão.

Se tudo que não nos é proibido, nos é permitido, não há como deixar de verificarmos possibilidade jurídica para a lavratura de escritura pública para regulamentar efeitos jurídicos a união poliafetiva. Afinal, como diz a célebre música do Roupa Nova, “para o amor, não existem fronteiras…”

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[1] Escritura reconhece união afetiva a três. Site do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM. Disponível em <http://www.ibdfam.org.br/novosite/imprensa/noticias-do-ibdfam/detalhe/4862>. Acesso em 21 jan. 2013.

[2] Segundo Thiago Felipe Vargas Simões, “a elaboração de contrato de convivência poliafetiva, para constituir uma vida familiar entre três ou mais pessoas, atacaria tanto as disposições atinentes ao Direito de Família quanto às destinadas aos negócios jurídicos, de modo a se chegar a duas conclusões: a) considerar-se-ia simples sociedade entre as pessoas que o celebraram, com efeitos meramente econômicos; b) considerar-se-ia nulo o contrato, reconhecendo-se a existência de uma união familiar estável e um concubinato, uma vez ser impossível o reconhecimento de uniões estáveis paralelas, haja vista a ausência de estabilidade, pois a lealdade e o respeito mútuos acarretariam a extinção de uma delas, bem como pela inexistência de boa-fé por parte dos que ali envolvidos. (SIMÕES, Thiago Felipe Vargas. Regimes de bens no casamento e na união familiar estável. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015, p. 139).

[3] PERDOMO, Ariane. Breves considerações acerca da partilha de bens aplicável às formações poliamoristas. In: ROSA, Conrado Paulino da. THOMÉ, Liane Maria Busnello (org.). O direito no lado esquerdo do peito: ensaios sobre direito de família e sucessões. Porto Alegre: IBDFAM-RS, 2014, p. 155.

[4] MADALENO, Rolf. Escritura de união poliafetiva: impossibilidade. Carta Forense, novembro de 2012.

[5] PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais norteadores para o Direito de Família. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p.94.

[6] RIOS, Roger Raupp. O princípio da igualdade e a discriminação por orientação sexual. A homossexualidade no direito brasileiro e americano. São Paulo: RT, 2002, p.89.

[7] TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p.33.

[8] GIORGIS, José Carlos Teixeira. A relação homoerótica e a partilha de bens. In: INSTITUTO INTERDICIPLINAR DE DIREITO DE FAMÍLIA – IDEF. Homossexualidade: discussões jurídicas e psicológicas. Curitiba: Juruá, 2001, p.132.

[9] Segue Paulo Lôbo: Consulta a dignidade da pessoa humana a liberdade de escolher e constituir a entidade familiar que melhor corresponda à sua realização existencial. Não pode o legislador definir qual a melhor e mais adequada. (LÔBO, Paulo Luiz Netto. Entidades familiares constitucionalizadas: para além do numerus clausus. Revista Brasileira de Direito de Família, Porto Alegre, n.12, p.46, jan./fev. 2002).